sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A treva


Ainda lembro-me daqueles dias como se fosse hoje, mesmo tendo se passado mais de sessenta anos, quando deito e fecho os olhos, revivo tudo outra vez. O engraçado é que mesmo tendo a infância mágica que tive, não consigo me lembrar dela com nitidez, o Mal do passado, suplantou toda a magia e deixou apenas a treva.
O Mal corrompe, a traição denigre...
Eu e minha família vivíamos em uma terra maravilhosa onde tudo ocorria com perfeição, as estações, os ciclos, as auroras...
Ainda posso sentir o toque suave e gélido da neve caindo em nossos rostos no inverno, a luz morna e agradável do sol acariciando nosso corpo no verão, o vento balouçando nosso cabelo em qualquer época do ano. Mas isso durou apenas alguns anos de minha juventude, durou até o Mal chegar.
            Ele não veio de repente e sem aviso, chegou aos poucos, no inicio como um sussurro, um lamento abafado, depois foi crescendo e se tornando visível, ganhou uma força inimaginável. Lembro-me que quando tudo começou, as estações foram as primeiras a sentir sua chegada, elas aos poucos deixaram de ser como eram e apenas o frio resistiu. Conseqüentemente, os seres mágicos sofreram seu impacto, tudo se resumia em neve branca, folhagens cinza, galhos tétricos e retorcidos. As aves e os animais caíram em um sono profundo, nunca mais assovios ou canções alegres ao alvorecer, nunca mais uivos ou ganidos para a lua cheia. Depois dos sinais terrenos, vieram os sinais celestes, o azul se desfez e deu lugar ao chumbo, nuvens de chumbo cobriram o horizonte, o sol se distanciou aos poucos até sumir definitivamente, havia uma tempestade iminente, mas que nunca desabava sob nossas cabeças. Esperá-la se tornou um hábito para todos, havia medo no olhar dos seres antes sorridentes e agora taciturnos. Mas com o passar dos meses, tudo virou rotina, e voltamos a viver quase como antes, até que nossa frágil paz se desfez como uma fumaça que sai da lareira e se dissipa no ar. Chegaram-nos rumores de que algo muito ruim estava acontecendo no outro lado do continente, e que logo chegaria ate nós. Lembro-me de meu pai cabisbaixo e pensativo, de minha mãe amedrontada e acuada como um animalzinho selvagem, temia por todos os seus entes queridos. Lembro-me de não entender o que se passava, mas de temer o desconhecido como se entendesse. De repente o doce ficou amargo, o alimento não tinha mais sabor, tudo que sentia era um vazio no estomago, como se algo de muito ruim pudesse acontecer de uma hora para a outra.
            Certo dia acordei e vi que não havia amanhecido ainda, talvez fosse de madrugada, então voltei a deitar aguardando o amanhecer. Mas ele não chegou. Cansada de esperar, fui até a janela e olhei para o céu em busca de resposta, mas tudo que vi foi à Nuvem antes apenas uma faixa no horizonte, agora sob nossas cabeças pesada e sombria. O Mal havia chegado até a gente finalmente. Ele passou a recrutar nossos conterrâneos para servi-lo, mas esse era um caminho sem volta, e meus pais sabiam que logo chegaria nossa vez, então teríamos que ir todos, sem distinção. Cansado de esperar, saiu à procura de uma salvação.      Alguns dias depois, chegou completamente mudado, conseguia até sonhar outra vez, acreditava que havia encontrado uma solução para a nossa salvação.
            No dia seguinte saímos todos felizes para a casa de um compatriota muito estimado por meus pais e apesar da cinza que cobria a cidade, da morbidez atmosférica, pudemos sentir prazer no passeio.
            Graças a ele, moramos por três meses no porão de uma habitação construída por nossos antepassados anões, exímios arquitetos e construtores engenhosos, só o amigo paterno sabia andar por entre seus labirintos. Estaríamos salvos se não fosse a traição.
Mas o Mal corrompe a todos, humanos ou não humanos. Corrompeu o bem também, tornou-se dono absoluto da terra, fomos descobertos na nossa incubadora, traídos e vendidos. Não importa o arrependimento, o ato heroico ou a autopunição, não fomos mais os mesmos desde então, nunca mais o verde ou a aurora, só a escuridão.