sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A treva


Ainda lembro-me daqueles dias como se fosse hoje, mesmo tendo se passado mais de sessenta anos, quando deito e fecho os olhos, revivo tudo outra vez. O engraçado é que mesmo tendo a infância mágica que tive, não consigo me lembrar dela com nitidez, o Mal do passado, suplantou toda a magia e deixou apenas a treva.
O Mal corrompe, a traição denigre...
Eu e minha família vivíamos em uma terra maravilhosa onde tudo ocorria com perfeição, as estações, os ciclos, as auroras...
Ainda posso sentir o toque suave e gélido da neve caindo em nossos rostos no inverno, a luz morna e agradável do sol acariciando nosso corpo no verão, o vento balouçando nosso cabelo em qualquer época do ano. Mas isso durou apenas alguns anos de minha juventude, durou até o Mal chegar.
            Ele não veio de repente e sem aviso, chegou aos poucos, no inicio como um sussurro, um lamento abafado, depois foi crescendo e se tornando visível, ganhou uma força inimaginável. Lembro-me que quando tudo começou, as estações foram as primeiras a sentir sua chegada, elas aos poucos deixaram de ser como eram e apenas o frio resistiu. Conseqüentemente, os seres mágicos sofreram seu impacto, tudo se resumia em neve branca, folhagens cinza, galhos tétricos e retorcidos. As aves e os animais caíram em um sono profundo, nunca mais assovios ou canções alegres ao alvorecer, nunca mais uivos ou ganidos para a lua cheia. Depois dos sinais terrenos, vieram os sinais celestes, o azul se desfez e deu lugar ao chumbo, nuvens de chumbo cobriram o horizonte, o sol se distanciou aos poucos até sumir definitivamente, havia uma tempestade iminente, mas que nunca desabava sob nossas cabeças. Esperá-la se tornou um hábito para todos, havia medo no olhar dos seres antes sorridentes e agora taciturnos. Mas com o passar dos meses, tudo virou rotina, e voltamos a viver quase como antes, até que nossa frágil paz se desfez como uma fumaça que sai da lareira e se dissipa no ar. Chegaram-nos rumores de que algo muito ruim estava acontecendo no outro lado do continente, e que logo chegaria ate nós. Lembro-me de meu pai cabisbaixo e pensativo, de minha mãe amedrontada e acuada como um animalzinho selvagem, temia por todos os seus entes queridos. Lembro-me de não entender o que se passava, mas de temer o desconhecido como se entendesse. De repente o doce ficou amargo, o alimento não tinha mais sabor, tudo que sentia era um vazio no estomago, como se algo de muito ruim pudesse acontecer de uma hora para a outra.
            Certo dia acordei e vi que não havia amanhecido ainda, talvez fosse de madrugada, então voltei a deitar aguardando o amanhecer. Mas ele não chegou. Cansada de esperar, fui até a janela e olhei para o céu em busca de resposta, mas tudo que vi foi à Nuvem antes apenas uma faixa no horizonte, agora sob nossas cabeças pesada e sombria. O Mal havia chegado até a gente finalmente. Ele passou a recrutar nossos conterrâneos para servi-lo, mas esse era um caminho sem volta, e meus pais sabiam que logo chegaria nossa vez, então teríamos que ir todos, sem distinção. Cansado de esperar, saiu à procura de uma salvação.      Alguns dias depois, chegou completamente mudado, conseguia até sonhar outra vez, acreditava que havia encontrado uma solução para a nossa salvação.
            No dia seguinte saímos todos felizes para a casa de um compatriota muito estimado por meus pais e apesar da cinza que cobria a cidade, da morbidez atmosférica, pudemos sentir prazer no passeio.
            Graças a ele, moramos por três meses no porão de uma habitação construída por nossos antepassados anões, exímios arquitetos e construtores engenhosos, só o amigo paterno sabia andar por entre seus labirintos. Estaríamos salvos se não fosse a traição.
Mas o Mal corrompe a todos, humanos ou não humanos. Corrompeu o bem também, tornou-se dono absoluto da terra, fomos descobertos na nossa incubadora, traídos e vendidos. Não importa o arrependimento, o ato heroico ou a autopunição, não fomos mais os mesmos desde então, nunca mais o verde ou a aurora, só a escuridão.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Dicionário de Tabaréu.


             Este é um dicionário diferente, nele vou colocar palavras conhecidas por poucos, mas que fizeram parte de uma curiosa infância de interior. Interior esse que falava um dialeto considerado exótico por aqueles que não estavam familiarizados com ele.

Arribar: levantar, suspender, içar.
            Ex: Ele arribou o candeeiro para ver melhor o caminho do quarto.
                  “Arribe a pata dele pra eu ver se ta ferida”.
Basculhar: varrer.
            Ex: Ela basculhou o teto hoje. Deixou um brinco.
Bebo: bêbado.
Brocoió: lotó.
Brôco: retardado.
Bungar: sujar a água límpida trazendo o lodo do fundo para a superfície.
Caçar: procurar algo.
            Ex: Ela caçou o brinco que perdeu em todo canto, mas nem sinal dele.
Capanga: bolsa usada para transportar objetos para a caça ou a pesca, alforje.
Capenga: de péssima qualidade.
Chiqura: algo extremamente chique.
            Ex: “Vai pra onde com tanta chiqura?”
                  “Ele comprou uma máquina que é uma chiqura só”.
Curiar: observar algo com curiosidade.
            Ex: Ela estava curiando dona Joana fazer bordado.
Esgulupido: guloso, ganancioso.
Enrabar: correr atrás de algo ou alguém. Perseguir.
            Ex: “Fui enrabado por um cachorro bravo”.
                    Enrabei ele no pega-pega.
Inriba: em cima.
            Ex: Ela deixou o menino inriba da cama e ele caiu.
                   “Subi inriba de um pé de mangueira”.
                    Tem também a cantiga popular:
                        Lá inriba do armário tem um copo de veneno, quem bebeu morreu, a culpada não fui eu, foi aquela que se mexeu.
Lambisqueiro: aquele que gosta de lambiscar. Piticar
            Ex: Ele só come lambiscando a comida, leva horas piticando.
Locréu: guloso, esgulupido.
Lotó: lerdo, não sabe fazer nada direito.
            Ex: Ela se veste como uma lotó.
Mangar: rir de alguém ou algo, caçoar.
Muié: cachaça, água ardente.
            Ex: Garçom! Manda uma muié de primeira aí, por favor.
Pegar punga: doPegar carona.
            Ex: Ele pegou uma punga na bicicleta  amigo.
Pungar: pular em cima de algo.
Pé de pau: pé de árvore.
Pitó: pito, bronca.
Piticar: lambiscar, comer devagar e aos poucos, petiscar.
Sesto: mania, costume, tique.
            Ex: Ela tem o sesto de balançar a perna quando está sentada.
Subir pra riba: subir para cima.
            Ex: O gato subiu pra riba da cama.
Sacudir no mato: jogar fora.
Tabaréu: caipira, camponês, roceiro, alguém sem instrução, que não estudou direito.
Trupicar: tropeçar.



sábado, 16 de outubro de 2010

Destempo

         
Há milhares de anos atrás, tantos que já perdi a conta, aconteceu algo que mudou a minha vida e a vida dos Newahanes para sempre, e posso afirmar que sou a maior responsável pelas desgraças que se abateu sobre todos nós. Tudo se passou na época em que os Deuses ainda andavam sob a terra como qualquer mortal. Éramos seres primitivos, vivíamos da caça e da pesca, usávamos roupas de pele curtida, cultivávamos a agricultura e sabíamos manejar bastões, lanças e flechas que eram usados contra os predadores, mas fora isso, cultivávamos a paz e a bonança. Cada Deus tinha uma nação, e cuidava dela como lhe conviesse, uns eram benevolentes e caridosos, outros eram cruéis e desumanos, mas todos eles defendiam sua raça com unhas e dentes.  Os Newahanes habitavam as planícies, possuíam grandes territórios com rios e florestas vastas, e isso causava inveja aos povos da vizinhança. Um desses povos se chamava Padwes assim como o Deus que regia aquela nação, e eram ambiciosos e invejosos, não admitiam que tivéssemos aquele paraíso para desfrutar enquanto eles tinham apenas as cordilheiras para habitar.
Para que vivêssemos em paz e respeitando as diferenças raciais, foi criado um código de ética que tanto Deuses quanto mortais teriam que seguir se quisessem viver em harmonia. Nesse código a principal lei dizia que toda vida humana era sagrada, e que se um mortal tirasse a vida de outro, deveria pagar com a sua vida pelo crime.
Mas com o passar do tempo às leis e ameaças já não surtiam os mesmos efeitos, não custava nada morrer em troca de poder, então começaram as guerras. O respeito à vida ficou em segundo plano, a riqueza passou a vir em primeiro. O Deus de nossa tribo se chama Pehawanes que quer dizer, pequeno guerreiro que comanda grande nação, e era irmão de Padwes. Nunca aceitou que usássemos de violência para resolver nada, nem mesmo em resposta a um ato violento.
Eu me chamo Agnes e cresci nesse mundo como a filha de um deus com uma mortal, não conhecia o ódio nem a ira, apenas o amor, por meus pais, meus irmãos de tribo, meu marido e meu filho Athewor. Até que um dia minha tribo foi covardemente ultrajada, invadiram nossos lares, destruíram nossa aldeia e mataram nossos homens e jovens. Não pude esquecer o horror daquele dia, os gritos e o desespero dos meus irmãos, fiz o que pude, mas todo o esforço foi inútil, mal pude salvar minha mãe e meu filho, assisti impotente à morte de meu marido que morreu para nos proteger. Meu pai não permitiu que reagíssemos e nos convidou a prantear nossos mortos para servimos de exemplo ao inimigo. Todos ficaram de acordo, menos eu. Não pude admitir que invadissem nossos lares, matassem nossos maridos e filhos, se apoderassem de tudo que nos pertencia por pura covardia e ficássemos quietos como se nada estivesse acontecendo. Incitei a todos que como eu, estavam com o coração cheio de dor e ódio, a vingar aquele massacre com a mesma moeda, eles precisavam sentir na pele o que sentimos diante de sua vilania. Formei um exército de mulheres viúvas e jovens órfãos, treinei-os e planejei tudo passo a passo, quando soubemos que os filhos de Padwes o Deus bárbaro partiram para mais uma batalha deixando seus lares desprotegidos, coloquei meu plano em prática. Massacramos todas as mulheres e crianças que encontramos, queimamos suas cabanas, espalhamos o terror, o que não foi muito difícil, eram todos frágeis e despreparados, deixamos apenas um adolescente capaz de andar por muitas léguas para que relatasse para o chefe da tribo no acampamento do outro lado da montanha tudo o que vira. Estava cega de ódio, não me importava de estar deixando meu povo em perigo, a única coisa que queria era saciar minha sede, sentir o prazer de ver o mesmo sofrimento que vivi estampado na face do inimigo, tirei-lhes o que tinham de mais caro e ainda não estava satisfeita, queria que soubessem como fora a minha vingança, a cada rogo uma vida a menos, mães implorando por filhos, jovens implorando pelos irmãos, gritos de dor e desespero, tudo exatamente como fizeram a minha família. Mas como a cada ato uma conseqüência, a punição veio em seguida. Não fui punida pelo inimigo, meu pai se encarregou disso. Ele não podia permitir que meu ato inconsequente trouxesse a desunião para o mundo, uma vingança leva a outra que leva a outra e assim sucessivamente, transformando o mundo num grande caos. Na época eu não entendia isso, mas hoje vejo com mais clareza. Então decidido a por um ponto final nessa historia, Pehawanes tomou a decisão mais difícil de sua vida. Nos levou a julgamento e fomos condenados pelos deuses ao exílio do tempo. Eu como chefe da rebelião e por me valer do fato de ser meio imortal e meio humana tive uma punição extra. Nunca me esqueci o momento da sentença, aquelas palavras ecoam na minha cabeça até hoje:
- Diante de todos os fatos apurados e do consentimento da culpa dos envolvidos no caso, fica decretado que os Newahanes envolvidos no massacre dos Padwes das montanhas serão condenados ao exílio do tempo por toda a eternidade. – Houve uma pausa e a comoção foi geral, meu pai sentado ao lado do Deus Minwe do povo frio que presidia o julgamento ficou boquiaberto. Então quando achávamos que havia acabado, eis que veio a pior parte. – Silencio, por favor! Ainda não acabei. Fica decretado também que Agnes filha de Pehawanes por se valer do fato de ser meio imortal e dessa forma levar vantagem sob suas vitimas, além do exílio, será condenada a orfandade filial a partir de já. De acordo com a lei máxima de nossa nação, terá que pagar com a vida de seu filho Athewor, a vida de tantos outros filhos que tirou dos Padwes. E que use o tempo do exílio para refletir em seus atos. – Quando ouvi aquelas palavras, foi como se o chão tivesse sumido debaixo de meus pés e me arrastado em uma queda vertiginosa por um profundo abismo, o ódio que sentia dos homens brancos das montanhas cresceu ainda mais naquele instante, minha vontade era expurgar da terra aquela nação impura, mas tudo que fiz foi gritar para que todos ouvissem as verdades que trazia dentro de mim.
- Se o que fiz foi tão errado? O que dizer de seres que atacam por ambição terras alheias, massacram, matam homens saudáveis? Eles nem respeitaram os nossos idosos indefesos, a alma de nossa tribo, fonte de profundo conhecimento. Eles têm feito coisas cruéis todos os dias e todo mundo finge que não vê. Por isso fiz o que fiz, cansei de esperar e fiz justiça com minhas próprias mãos, e isso só me põe em posição igual a dos homens das montanhas, não me torna melhor nem pior que eles.
- A sentença foi dada. – enquanto se levantava para partir, eu apelava pelo seu bom censo. Mas Minwe sequer olhou para trás. Então descarreguei todo o meu ódio na única pessoa que deveria ter me defendido, mas preferiu se manter impassível. – E você não vai fazer nada? Vai deixar que tirem meu filho de mim dessa maneira? Não bastava o fato de ter de viver parada no tempo por toda eternidade remoendo meus erros, ainda tem que me punir com mais essa dor para carregar? Como pode ficar quieto diante de tanta injustiça papai?
- Me perdoe querida?
- Não me chame de querida! Isso só faz aumentar meu ódio por você. Como pode deixar que me deem tal punição?
- Eu não podia fazer nada Agnes. Tenho toda uma nação para servir de exemplo. Você só colheu o que plantou.
- Nunca vou te perdoar! – O ódio que meu pai viu em meus olhos deve ter sido tão grande que o fez recuar decepcionado. Tenho certeza que ele teria fugido se pudesse. Mas se manteve inabalável.
 - Um dia você vai me entender. – Falou e saiu sem olhar para trás.
Padwes que assistira a tudo triunfante veio jogar sua satisfação em minha cara.
- Sinto muito querida sobrinha, de coração. Tão jovem e bela e já condenada ao exílio. Se não fosse eu a maior vitima teria até intercedido por vocês. – Falou e soltou uma sonora gargalhada.
O sangue ferveu em minhas veias, o teria retalhado com minhas próprias unhas se não tivessem me segurado.
Depois do nosso confronto, fui levada para o quarto, no momento não entendi por que, mas depois descobri que meu pai havia pedido revisão da pena alegando que fora injusta e desigual. Dois dias depois houve uma nova audiência e meu pai foi meu intercessor, graças a sua interferência consegui uma atenuante, seriamos libertados do exílio quando deixássemos para trás todas as magoas e conseguíssemos perdoar nossos inimigos, mas isso não seria assim tão fácil, as feridas que eles nos causaram seriam eternas. Recebi a nova sentença sem muitas expectativas, me fechei em mim assim que comecei a cumpri-la. Desde então estamos vivendo no que chamamos de destempo.
Sem dia, sem noite, sem horas e sem minutos, sem envelhecer e sem morrer. Os jovens continuam jovens fisicamente, as crianças continuam crianças ao menos no corpo, mas nossas mentes não são as mesmas, crescemos, amadurecemos e aprendemos muitas lições com a vida, até já nos acostumamos com o destempo. Sei que muita coisa deve ter mudado no mundo, pois o ambiente que vivemos tem mudado constantemente, como uma tempestade que varre as encostas do dia para a noite, as planícies férteis ficaram áridas, a vegetação antes verde e viçosa já não existe, tudo que temos é um ambiente desértico e acre. Em uma de suas visitas meu pai disse que isso acontece por que os habitantes do mundo em nossa volta transformaram a terra completamente e mesmo sem tempo sofremos com suas mudanças. Também perdoei o meu pai, se demorou muito ou pouco para isso acontecer não sei, mas sei que tudo aconteceu no tempo ditado por meu coração. Ele me visitou um dia e disse que estava sofrendo muito por minha causa, que não podia mais suportar minha raiva e indiferença, que tinha esperado que eu o solicitasse, e sabia o quanto eu tinha sofrido. Por mais injusto que tivesse sido comigo, ninguém me amava mais que ele. Não resisti a seu apelo e o abracei, choramos juntos pela primeira vez depois de tudo. Revelou-me que esse era um grande passo para minha libertação, já que com esse gesto provei que estava aprendendo com meu castigo. Espero realmente que esse dia chegue, que esse ódio que ainda sinto arrefeça e me traga Athewor de volta, mas confesso que tenho perdido a esperança.


domingo, 10 de outubro de 2010

Noite de Tormenta

                                                           


            O vento batia na vidraça e entrava pelas frestas produzindo sons assustadores, deixando Lina aterrorizada, o mar lá fora rugia como um monstro assustador, a tempestade estava arrasando a ilha e os moradores não podiam fazer nada a não ser esperar a tormenta passar. Não tinha medo da casa em que vivia ser destroçada pelo tornado, era forte, já resistira a muitas outras tempestades, mas no mar tudo era diferente, havia perigo pra quem era pego desprevenido, o tempo mudara de repente e havia pescadores no mar, um em especial a fazia tremer de preocupação.  Ela tinha uma ligação muito forte com o pai, era capaz de sentir sua presença mesmo a metros de distância, sentia seus medos e angustias, era capaz de precisar quando ele estava bem, ou não. Agora mesmo sabia que ele não estava bem, algo de muito errado estava se passando. Poderia ir até o quarto da mãe buscar consolo para essa longa espera, mas achou melhor aguardar de olhos grudados na vidraça com um fio de esperança, tinha fé que junto com os primeiros raios solares, o mar traria seu pai de volta. Enquanto Lina sofria por Artur na segurança de suas paredes seculares, ele vivia a maior e pior provação de sua vida.
            Quando tudo começara, estavam todos guardando os pertences que acabaram de usar na pescaria farta do dia, felizes com a sorte que tinham tido, quando um estrondo ribombou ao longe como um trovão cortando o céu rubro de fim de tarde, mas pela experiência de todos os tripulantes, não acreditavam que fosse uma tempestade se aproximando, o céu não desaba assim sem mais nem menos. È preciso um sinal antes, nuvens carregadas, ventos fortes ou neblinas sorrateiras. Antes que pudessem se dar conta do que se passava, outro estrondo ainda mais assustador foi ouvido. Artur não pensou duas vezes, recolheu as redes, os arpões, as varas e o passaguá, deu ordem pra que zarpassem sem demora, algo de muito ruim estava prestes a acontecer. Os trovões continuaram cada vez mais perto e audível, um tremor percorreu sua espinha ao pensar que finalmente chegara seu fim, não iria cumprir o que prometera a Lina ao partir a quatro dias atrás. Dessa vez não poderia voltar pra casa em segurança.
            - Içar as velas! Levantar âncora e zarpar imediatamente! – Gritava para os tripulantes, que corriam para todos os lados desesperados.
            Mas antes que pudessem fazer algo, uma densa nuvem negra chamou-lhes a atenção. Era assustadora, parecia um espectro gigantesco vindo rapidamente em direção ao veleiro, não haveria tempo de fugir, aquela estranha tempestade os pegaria de assalto mesmo se tivessem asas. Um vento extremamente forte começou a soprar, agitando o mar outrora pacífico, a coisa chegava perto muito rápido, tudo que conseguiram pensar foi que seria uma batalha árdua, mas não se renderiam tão facilmente, não sem lutar com unhas e dentes primeiro. As velas foram içadas e inflaram rapidamente, o mastro rangia com a força da ventania, Artur achou que ele não resistiria muito tempo, começou a rezar para que aquele vento fosse uma benção ajudando-os a ir para longe daquele pesadelo, e não uma desgraça ainda maior. Havia pânico no rosto dos pescadores, ninguém conseguia entender nada, mas antes que Artur pudesse dizer alguma palavra de consolo, Daniel, o segundo comandante gritou para que olhassem algo. O que todos puderam ver foi à gigantesca nuvem se transformando bruscamente em uma espiral que sugava tudo que vinha pela frente espargindo água para todo lado, o mar parecia enlouquecido, se realmente havia um Deus do mar, ele devia estar muito furioso. O cone parecia sugar a água do oceano para o céu em uma dança vertiginosa, a impressão que dava é que seriam sugados por aquele fenômeno assustador. Ficara noite derrepente e à medida que o cone furioso se aproximava, a escuridão se tornava ainda mais intensa. Uma força invisível começou a sugar o veleiro para a corrente formada pela dança da água, as ondas dançavam em círculo loucamente, e eles estavam sendo arrastados para aquela armadilha. Houve pânico entre os tripulantes, homens correndo para todos os lados procurando inutilmente a salvação, estavam desesperados com a possibilidade da morte iminente. Artur não sabia o que fazer, pensou na filha e na promessa que não poderia cumprir, ela estava sofrendo e ele podia sentir em meio a tantos sentimentos contraditórios sua angustia e desespero. Em meio aos gritos e vozes desconexos gritou para Deus ou quem quer que pudesse ouvir: - Lina, me perdoe! Eu não vou poder cumprir minha promessa! Não foi minha culpa. Eu fiz o que estava em meu alcance filha. – Caiu de joelhos apavorado e incrédulo. Então seria assim seu fim? Esmigalhado pelo vento furioso? Nunca em sua vida isso lhe passara pela cabeça, sempre pressentira que morreria velhinho, tranqüilamente deitado em sua cama no seio de sua aconchegante família, após dezenas de anos de trabalho gratificante e vários pequenos sonhos realizados.
            Antes mesmo de terminar seu desabafo, ouviu um estalo, como se algo houvesse se rompido e sentiu uma força projetar seu corpo contra o casco da proa. Antes que pudesse se agarrar em algo, foi novamente lançado contra o convés e depois a bombordo em uma luta desenfreada, enquanto era projetado novamente a estibordo pode se agarrar na janela do camarim de rádio, as mãos escorregavam por causa do banho involuntário, mas não largou o apoio. Só então foi que pode compreender o que se passara, o vento rompera o mastro que desabou sob a proa fazendo o veleiro descer de bico com o impacto, logo voltando a posição normal, onde foi surpreendido por uma onda devastadora, que o fez oscilar entre esquerda e direita como um frágil barquinho de papel, mas por mais que ele parecesse frágil, conseguiu se recuperar antes de adernar a bombordo. Novamente foi arremessado contra o vazio e bateu com força na água, Artur olhou em volta em busca de seus homens, constatou com pesar que restara apenas ele e mais três; dois deles presos nas amarras do que fora o mastro e o outro fora arremessado para o camarim próximo a ele. Certamente o restante sumira na imensidão negra no redemoinho. Mal o pobre veleiro se recuperou, foi sugado pela correnteza aspiralada formada pelo tornado furioso, todos foram engolidos pela água enquanto seguiam em uma corrida circular vertiginosa, o vento rugia. Sem fôlego, o pai de Lina se segurava como podia se recusando a morrer de forma tão absurda, a dança durou pouco mais de um minuto, até que o som ensurdecedor foi se distanciando, as dança cessando, restando apenas o embalo das ondas agitadas, mas para ele fora uma eternidade. Cedeu a pressão que fazia para se segurar e se deixou ficar deitado de barriga para cima exausto, ouviu um choro distante o que o fez ver que não estava sozinho, os restos do Netuno seguia o embalo das ondas, logo cederia e afundaria com todos os sobreviventes a bordo, se é que havia mais alguém além dele e do outro que chorava ao seu lado. Sentia dor em todo o corpo, a morte estava sendo dolorosa, se bem que ainda estava vivo, poderia sobreviver se estivesse perto de casa e não a deriva nos restos mortais de um pesqueiro velho e guerreiro. Mais uma vez pensou na filha que certamente estava dividindo todos seus sentimentos com ela, maldita ligação que faria sua pequena sofrer tamanha dor. O que via como benção, soava agora como uma desgraça sem tamanho.
             Enquanto sofria por saber que dividia aquele momento doloroso com a filha, o outro sobrevivente parara de chorar, se aproximou dele com dificuldade.
- Então estas vivo ainda Artur, tens a couraça de chumbo como eu? – O jovem se aproximou e deitou ao lado do amigo.
Artur ficou surpreso ao reconhecer Daniel, de todos era o último que esperara encontrar vivo, tão magro e frágil, era ainda inexperiente para esse tipo de situação, talvez tivesse contado apenas com a sorte como ele. Bela sorte, não morrer tragado pelo furor, para morrer aos poucos em uma batalha inglória, não sabia por que ainda se agarravam aquele fio de vida.
- Será mesmo que estamos vivos? Será que tudo isso não passa de um processo de expiação por nossos pecados na terra?
- Estamos vivos, até quando não sei, mas estamos vivos.
- Engraçado como tudo se acalmou derrepente não é? Quem diria que acabamos de passar as portas do inferno.
- É, acho que nunca vi ou ouvi coisa igual em minha vida, sem mais nem menos tudo se transformou e se perdeu num piscar de olhos. Agora vemos esse céu esplendidamente azul, como se ele não tivesse desabado sobre nós há pouco.
            Mal fechou a boca, sentiram o barco oscilar bruscamente e ser impulsionado a uma boa distância por uma forte onda, Daniel levantou assustado para ver o que se passava e ficou horrorizado, não acreditava no que seus olhos viam. Gritou para o companheiro apavorado. Artur levantou com muito esforço e olhou para onde o outro apontava boquiaberto. Ficou paralisado ao ver uma forma negra singrar o mar em direção a eles em uma velocidade impressionante. Não podia acreditar no que seus olhos viam, era surreal.
- O que é aquilo? – Balbuciou com voz fraca. Daniel estava paralisado.
A coisa fazia o mar se agitar ao sabor de seu movimento, Netuno oscilava de maneira ritmada, ambos em perfeita sincronia. Quanto o ser se aproximou o suficiente, se pos em pé como uma naja prestes a dar o bote, eles puderam identificar o que era um misto de serpente, dragão chinês e enguia. No comprimento lembrava uma serpente, no formato da cabeça lembrava os dragões da cultura chinesa e na pele lisa e esverdeada lembrava uma enguia.
- O grande Leviatã! – Daniel balbuciou perplexo. – É real!
Artur não compreendia o que o outro dizia, não sabia quem era esse tal leviatã, mas acreditou no que o outro dizia, não era momento para brincadeiras. Ele constatou apavorado que mais um mergulho e estaria dentro da barriga da aparição. Mas o grande animal continuou imóvel encarando-os do alto de seus mil metros de altura, o que era intrigante, ele parecia querer se comunicar com ambos.
- O que é que você quer da gente seu monstro? Por que nos olha desse jeito? Por que não vem logo e acaba com esse sofrimento de uma vez? Por acaso está nos achando com cara de ratos pra querer brincar com a comida? Pode vir bobão, mas antes saiba que não faremos nem cócegas dentro de sua barriga monstruosa, seu grande idiota. – Artur olhou para o amigo perplexo. Será que ele enlouquecera no momento derradeiro, ou era o pavor que lhe fazia dizer tanta besteira?
            Por mais que parecesse ridículo, as palavras de Daniel afetaram o ser que soltou um som apavorante, um misto de gemido com o canto produzido pelos cetáceos, o que fez Artur chegar à conclusão de que ele se ofendera. Decidiu tentar contornar a situação.
- Não liga pra ele não seu monstro, é um louco. Se quiser nos comer, fique a vontade, mas antes eu queria fazer um pedido. Faça a minha filha saber que eu tentei manter minha promessa de voltar para ela, mas não deu. Diga que não sinta raiva de mim, eu fiz o que podia. – Se sentia um idiota, talvez estivesse louco também, falando para um ser imaginário que o amigo era louco, mesmo assim continuou. – Seja lá o que for que tenhamos lhe feito para que aja assim conosco, perdão. Perdão se lhe ofendemos de algum modo. Não foi proposital. Sempre quis ser um homem íntegro, honrado, jamais profanaria meu segundo lar, que agora sei que é seu habitat também. Só há uma coisa mais sagrada pra mim que isso aqui, minha família. Que não verei mais depois de hoje. Espero que aceite minhas desculpas, são sinceras.
            Enquanto discursava, Daniel o olhava assombrado, certo que o amigo enlouquecera de vez.
- Que está dizendo homem. Não seja covarde. Se vamos morrer, que morramos como homens valentes, homens do mar, temos que encarar aquilo ali como um de nós, não um superior. Que historinha de perdão, profanação e o escambau. Seja macho! – Virou pro Leviatã e gritou com todas as forças. – Ô coisinha ai! Vem me encarar se for macho! Não seja covarde como esse aí não, eu é que sou páreo pra você. – Enquanto falava, subiu na amurada e fez vençao de pular na água. Mas Artur o segurou pelo braço.
- Onde você pensa que vai homem? Ta louco?
- Eu vou mostrar ao Zé grandão ali quem é que manda no pedaço, cara. Agora me solta que eu tenho contas a acertar.
            Falou e pulou se desvencilhando do aperto do amigo para o abismo lá embaixo. Mal viu o amigo sumir na água, se sobressaltou ao ver que o monstro mergulhara também com a bocarra aberta sugando tudo pela frente. Só teve tempo de colocar os braços em volta do rosto para se proteger e foi tragado para a escuridão junto com a embarcação.
            Acordou com uma luz muito forte queimando seu rosto, não conseguiu abrir os olhos, mas pode sentir que uma sombra se projetava sobre seu corpo dolorido. Ouviu vozes conhecidas e achou que chegara ao paraíso. Eram vozes femininas e ambas choravam de emoção. Não conseguiu abrir os olhos, a claridade feria sua retina. Estava exausto e deixou adormecer novamente. Achou que dormira uma eternidade, acordou menos debilitado, testou abrir os olhos e os fechou em seguida, a claridade não era tanta quanto da outra vez, mas ainda era difícil fazê-lo de súbito. Uma pessoa correu para perto de si e exclamou feliz uma oração rápida. Pode reconhecer aquela voz de imediato, era Lina que estava ao seu lado e agora gritava pela mãe emocionada. Realmente estava no paraíso. Tentou abrir os olhos até que conseguiu divisar as feições tão amadas das mulheres de sua vida.
- Que bom que acordou papai! Está sentido alguma dor?
- Não, querida. Estou bem, onde estamos? Como vieram parar aqui?
- Está em casa papai. Esse é o seu quarto lembra?
- Em casa? Em minha casa? – começou a chorar de alegria. – Mas como em casa? Não pode ser?
- O seu veleiro naufragou perto da costa papai. Encontramos o senhor desacordado pela manhã perto dos destroços na beira da praia.
- Mas como? E os outros? Cadê todo mundo?
- Infelizmente você foi o único sobrevivente Artur. Não encontraram mais ninguém. É realmente um milagre que esteja vivo, amor.
            Ele ouvia tudo incrédulo, confuso, mas estava feliz por poder ouvir novamente aquelas vozes que soavam como músicas de anjos, se fora real ou imaginário o que se passara com ele, não sabia, mas agradeceria por toda vida ao amigo marítimo que lhe proporcionara essa segunda chance.
            Sorria e chorava ao mesmo tempo como louco enquanto a mulher e a filha o enchiam de beijos, felizes por aquele milagroso renascimento.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Amor Sertanejo


- Não me dê motivo pra ir embora Madá. Você ainda vai me perder, olha o que to dizendo.
- Agora eu sou a culpada, você que me desrespeita e eu é que to dando motivo pra você me deixar? Essa é boa.
            Gustavo ficou furioso com o tom de ironia da esposa, ela estava passando dos limites. Levantou do sofá e saiu pela porta da rua.
- Aonde cê vai?
- Vou anuviar as idéias, me deixe.
            Não esperou ouvir o que ela tivesse pra dizer, saiu a passos largos, sem destino, no caminho decidiria pra onde ir. Quase sem perceber rumou para a casa da mãe que ficava a poucos metros de distancia da dele. Em pleno domingo Madalena resolvera comer seu juízo como se não tivesse nada mais interessante pra fazer. Chegou na casa da mãe, cumprimentou a todos e se apoiou no umbral da porta agastado.
- Que milagre é esse fio? Cadê Madá? Num veio com cê?
- Num me fale nela mãe que já to pelas tampas com aquela encrenqueira duma figa.
- Brigaram mais uma vez fio? Num cansam não?
- Canso mãe, canso. Já falei pra ela que uma hora a casa cai, num agüento mais. Gasto meus dias na lida sem descanso, sou home de família, num sou muleque pra ela viver arrumando amante pra mim em cada esquina que chego. Num dô motivo pra disconfiança, quando ela me conheceu, sabia da minha mania de tomar uma cervejinha aos sábados no bar do Tunico, num tenho outra diversão a não ser essa. Agora deu pra pegar no meu pé... hunf... to arreliado viu mãe, isso me aperreia. Me seguro pra não fazer uma besteira horas dessa.
- Tenha paciença fio, ela ta esperando minino, isso muda os procedimentos da mulher, faz ver chifre em cabeça de cavalo. Ela é muito nova, premera gravidez, ta insigura. Barriga muda à cabeça da mulher como cê nem imagina.
- Isso né disculpa não mãe, eu num engulo essa. Ela ta é me dando motivo pra sair de casa pra nunca mais vortá. Devia agradecer por eu ser fiel, amar ela como amo, trabalho, num sô vagabundo, quando o tempo deixa tem até fartura em casa. Quer o que mais me diz?
- Cê ta de cabeça quente, areie as idéias um pouco, num volte lá agora não, espere as idéias se acentarem, depois ceis conversam com calma, arresorve as coisas direitinho. Num aja com precipitação não, senão vai se arrepender depois e arrependimento mata.
- Ta certo, vou dar uma vorta perai, depois vejo o que fazer. Sua benção.
 - Que Deus lhe abençoe. Vá com Deus.
            Saiu deixando a mãe preocupada, mas não podia ficar, precisava pensar bem no ocorrido e tomar uma decisão, do jeito que tava não podia ficar. Andou pela estrada de terra sem apreciar a paisagem em volta, não se importava com a vegetação seca, as arvores desfolhadas, a terra rachada, o sol escaldante e o céu esplendorosamente azul. Estava com o coração cheio de mágoa. Se tinha duas coisas em que acreditava nessa vida era, na fé em Deus e na honra de um homem. Madalena jamais poderia dizer que não era temente e honrado, tinha seu orgulho e ela o feria constantemente.
Como ficaria diante dos vizinhos e amigos a sua reputação, se sua mulher só vivia manchando-a. Não podia permitir essa injustiça. Amava aquela mulher, amava como nunca tinha amado ninguém, mas como continuar vivendo assim? Por outro lado, como viver sem ela? Sem seu sorriso, seu toque suave, sua risada que mais parecia moda de viola, sua força de vontade?
            Ela trabalhava na cooperativa do povoado, fazia doce de compota, sabonete, produtos de beleza, artesanato, rendava... Nunca vira mulher mais esforçada, mais prendada. Ninguém diria que era tão novinha. Era muito bela também, tinha cabelos de índia, pele bronzeada, olhos expressivos, voz macia, cantava feito sereia.
            Quando chegou na cidade nem viu que já era de noite, não reparou no tempo até se dar conta que viera parar no bar do amigo. Madalena devia ta preocupada, mas não ia se agastar, ela tinha que ter uma lição pra parar de ser imatura.
             Se deixou ficar por mais algumas horas, gostava de ir lá, ouvir moda de viola, ver os amigos, saber das novidades. Desde que nascera vivia ali no sertão, não conhecia outra vida, não estudara, mal sabia ler e contar, mais por falta de oportunidade do que de vontade mesmo, na roça se cresce cedo, toma responsabilidades cedo também, a aprendizagem é outra. Na escola da vida aprendera que nada vem de mão beijada, que não devemos reclamar do que a vida oferta, a água que abençoa também mata, a seca que destrói também trás alternativas, e que Deus dá, mas também tira.
            Quando pensou em Deus lhe veio à mente a esposa, a mãe falara uma vez que ela não tinha uma boa gravidez, que mulher que incha desde cedo quando ta de barriga, não era coisa boa. Um frio gélido percorreu sua espinha até a nuca, não queria nem pensar na possibilidade de perder Madá. Não poderia viver sem ela. Lembrava como se fosse hoje o dia que a conhecera naquele mesmo recinto dançando xote toda faceira, encantando a todo mundo com sua graciosidade. Ela era tão perfeita, o que mudara então? Precisava voltar pra casa, conversar, colocar as coisas nos eixos, não podia deixar que uma briguinha de nada transformasse sua vida numa caatinga. Não podia deixar a secura habitar entre os dois.
            Quando entrou em casa a encontrou deitada na cama acordada. Quando ela o encarou estava de olhos vermelhos de tanto que chorara. Gustavo sentiu medo de sua reação, mas ficou surpreso quando ela pulou em seus braços e beijou seu pescoço emocionada.
- Perdão Guto, perdão. Prometo que não vou mais fazer isso. Eu vou mudar, não quero que você me deixe por causa de meu ciúme doentio. – Ela soluçava enquanto falava agarrada ao pescoço dele.
- Eu gosto tanto de você neguinha. Num me magoe mais não. Vamos tentar viver em paz, sem desconfiança sem razão.
- Eu tive tanto medo que você num voltasse mais pra mim.
- Como eu podia te deixar Madá, você é minha razão de viver. Num saberia ficar longe de cês duas. Não ver Mariana nascer, não ta com você nesse momento. Não podia ir embora, não agora. Temos tanto pra viver ainda, vamo ser muito feliz nessa vida.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

Aracê e Kaluana: Pequena aurora e pequeno guerreiro

É preciso ser muito especial para merecer uma criança especial.


            
Aracê viu a mãe sair chorando da cabana e olhou para o irmão menor dormindo na rede, haviam acabado de falar sobre ele, os mais velhos da família estavam reunidos pra decidir o destino daquele pequeno ser, mas ambas já sabiam qual seria a sentença e estavam desesperadas. Iaciara voltou com um bulbo na mão, Aracê sentiu que a mãe estava planejando algo e não era bom.
- Que você vai fazer mãe?
- Nada. Não podemos fazer nada né?
- Vamos embora daqui mãe. Vamos pra aldeia dos homens brancos, eles vão ajudar nois.
- Eu não posso, esse é meu povo, nunca mais ia poder voltar. Não posso viver longe daqui.
- E Kaluana mãe? Não vou conseguir viver sabendo o que fizeram a ele. Não posso deixar que o enterrem sem fazer nada. Eu entro no buraco junto com ele mãe. Não quero viver sem ele.
- Você vai com ele pra aldeia dos brancos então. Cuida dele pra mim. Leva ele pra longe filha.
- Mas como mãe? Sozinha? Vamos comigo.
- Se você tem medo é melhor ficar tudo como tá. Vamos esperar seu pai voltar e terminar logo com isso.
Aracê olhou para o irmãozinho dormindo candidamente e começou a chorar. Tinha medo da floresta à noite, tinha medo dos espíritos, tinha medo do castigo de Tupã e dos irmãos de tribo. Mas tinha mais medo de não ter mais seu pequeno consigo, ele não podia ser castigado por algo que não fizera, era inocente. Pegou a tipóia no gancho e passou em volta do corpo, pediu à mãe que ajudasse a acomodá-lo ainda dormindo e o beijou. Era lindo e gorducho.
- A senhora vai ver a gente depois?
- Vou sim, você não sabe como me faz feliz filha, salve seu irmão por mim. Não tenha medo, eu vou lhes proteger todo tempo. Agora vai antes que chegue alguém, você ta protegida pelo escuro da noite, vai ser mais fácil.
- Vou lhe esperar mãe, você e o pai.
Iaciara abraçou os filhos em prantos, era pro bem deles, mesmo assim era muito difícil, mas era a melhor decisão a tomar, antes os dois banidos, mas vivos do que os dois mortos e ela viva. Não queria nem pensar.
 Aracê saiu com cautela da cabana para não ser vista e entrou na floresta escura, não quis pensar no pavor que sentia pra não faltar à coragem, seguiu o mais rápido que podia com o irmão seguro nas costas preso pela tipóia, era pesado demais para seu corpinho pequenino e frágil, por isso não conseguia correr como desejava, logo saberiam de sua fuga e iriam atrás deles, seria punida com a morte se fosse pega, por isso não parou um minuto sequer, mas mesmo com os olhos familiarizados com a luz da floresta, não conseguia identificar pra que direção estava indo, deviam estar perdidos.
Sentia frio, fome e muito cansaço, não fazia idéia há quanto tempo estavam andando, mas já andara muito, talvez o suficiente pra se sentir segura e parar, precisava descansar, estava dormindo em pé. Encontrou a raiz de uma velha árvore que serviria de abrigo contra os animais perigosos, retirou o irmão das costas e sentou com ele aconchegado em seu colo. Ainda dormia, seus olhinhos puxados mal tinha cílios, pareciam jaci quase coberta por tupã, sua boquinha mastigava algo invisível, talvez sonhasse.
Estava tremendo, não sabia se de frio ou de medo, estava apavorada, sentia que nunca mais veria sua aldeia, seus familiares, sua mãe. Talvez morressem ali mesmo picados por uma cobra, picados por um inseto venenoso, ou de fome e frio, a floresta escondia inúmeros perigos. E se estivessem perdidos? Não trouxera nada consigo para ela e para Kaluana, pequeno guerreiro. Não queria pensar nisso, seria pior.
O médico dissera que ele era doente, tinha o coração fraco por isso não se desenvolvia direito, alem de uma doença na cabeça, nunca seria como ela ou os pais, ele era especial. Talvez o médico de branco estivesse mesmo certo, ele era um guerreiro especial. Enxugou as lágrimas que insistiam em cair por seu rosto, já tinha treze anos, não era mais curumim pra chorar de medo. Era quase adulta, sabia tomar decisões, e era responsável pelo pequeno Kaluana agora. Beijou a testinha fria do irmão que apesar de ter mais de dois anos, ainda era seu bebê, e encostou a cabeça no tronco da árvore. A essa altura seu pai e os guerreiros da tribo já devia estar procurando por eles. E sua mãe, como estaria?
Dormiu sem sentir que o fazia de tão cansada, acordou com os resmungos do menino, quando abriu os olhos já estava alvorecendo e os pássaros já cantavam nas árvores em volta. Levantou e o deitou no chão, mas como o menino ficou chorando pegou no colo e levou para procurar algo pra ele comer ou beber, se continuasse fazendo barulho atrairia algum predador ou até mesmo os índios que provavelmente os buscavam. Achou frutos secos derrubados pelos macacos, deu ao irmão triturado pra que pudesse engoli, ela podia esperar mais um pouco. Depois da pobre refeição, seguiram em frente, com a aurora viera também um novo fio de esperança, seu coração dizia que achariam a saída, seriam salvos e amparados. Seu irmãozinho teria tratamento e viveria muito tempo ainda, ela seria uma ótima irmã para ele. Mas quanto a seus pais, seu coração não dava bons presságios, sentia que estavam sós no mundo. Seguiu a trilha visível agora com a luz do sol, pegaria a estrada e iria pra cidade mais próxima pedir ajuda no primeiro órgão público que encontrasse. Não importava o que seria do futuro, o importante é que seu irmãozinho não seria enterrado vivo.

sábado, 18 de setembro de 2010

Cruzada - o Fim de um Cavaleiro Templário

“Um Cavaleiro Templário é verdadeiramente, um cavaleiro destemido e seguro de todos os lados, para sua alma, é protegida pela armadura da fé, assim como seu corpo está protegido pela armadura de aço. Ele é, portanto, duplamente armado e sem ter a necessidade de medos de demônios e nem de homens”.
                                                         Bernard de Clairvaux




A febre o estava consumindo, suas carnes tremiam como se um inverno rigoroso estivesse dentro si. Seus músculos se contraiam a cada onda de dor que o possuía, suava a ponto de ensopar as vestes que usava e
as imagens desconexas o atormentava.
- Não quero o fogo do inferno... Ele está me queimando...
 Enquanto delirava sentiu mãos frias tocarem seu rosto, não conseguia abrir os olhos, então se absteve em sentir aquele toque tão agradável e reconfortante. Há tanto tempo longe de casa, sem uma presença amada, conhecida e aliada. A mesma mão estava agora fazendo compressa de água fria em seu rosto, estava cuidando de si, era tão agradável ser cuidado por alguém, mesmo que fosse inútil tanto zelo, estava no fim de sua jornada, a peregrinação para ele era finita, como seus sonhos, agora tão inatingíveis. Lembrava perfeitamente o dia que entrara para a ordem, jovem, idealista, visionário. Queria salvar vidas, almas, pregar a paz. Proteger a terra santa dos ímpios, se bater em combate em nome de Deus, salvar sua alma do fogo do inferno, mas sequer chegara a um corpo a corpo real, não conheceu batalhas além das encenadas no treinamento militar. Não sentiu o prazer de pisar no solo sagrado, fora deixado para trás como tantos outros em situação semelhante, a peste estava dizimando fieis, e ele seria apenas mais um, sem renome, méritos e honrarias. Não era isso que sonhara pra si, mas aceitaria com resignação a vontade divina.
A dor aumentou a ponto de fazê-lo gritar, as lembranças ficariam pra depois, começou a se contrair, foi obrigado a beber um liquido amargo e frio, fazendo arder seus lábios rachados. Sentia que seu corpo estava se rendendo, não movia mais os membros, sua respiração estava difícil, sua garganta parecia uma grande ferida, doía demasiado quando comia ou bebia algo. Mesmo assim, esperaria pacientemente seu fim, não pediria que o senhor o levasse, provaria que era um bom fiel, não um blasfemo.
Finalmente adormeceu. Não sabia quanto tempo dormira, afinal o tempo já não fazia sentido mesmo, só sabia que acordou bem melhor, era noite, o céu estava estrelado e divinamente belo, podia abrir os olhos sem sofrer com a luz, era gratificante ainda poder ter esse pequeno prazer, uma jovem veio em seu auxilio visivelmente animada.
- Que bom que estas melhor, posso ver em seu rosto essa incrível melhora.
Ela tinha uma voz doce e melodiosa, feições agradáveis e acolhedora. Tocou em sua testa pra sentir a temperatura, suspirando aliviada.
- Sem febre. Isso não é ótimo? Vou pegar um caldo para o senhor beber, deve estar faminto.
- Não posso beber, é torturante engolir alguma coisa. – Sua voz estava fraca e rouca, a garganta doía quando falava, mas precisava falar, não aguentava mais aquele silêncio, aquela solidão, estava só há tantos dias. – Eu só queria conversar, saber das novidades.
- Não senhor. Precisa comer, poupar suas energias para o período de convalescença.
- Não vou chegar a isso, meu fim já chegou.
- Como não, se estas tão bem depois de estar as portas do paraíso?
- Não precisa tentar me agradar, eu sei que não me restam esperanças. Está terminada minha jornada.
- Pois, eu lhe digo que não, estou lhe cuidando há dias e dias, depois de tudo que viveu, é visível sua melhora, o que não falta é esperança.
- Por que estas cuidando de mim se sou um caso perdido, como todos os outros que estão ou estiveram aqui nesse acampamento?
- Por que estas vivo, e enquanto há vida, há esperança. E também por que sei que es forte, jovem, não se rendera tão facilmente.
- E se eu morrer? Não terás trabalhado tanto em vão? Estas perdendo sua juventude num lugar como esse. Correndo o risco de juntar-se a nós nesse infortúnio.
- Nada acontece por acaso, se eu adoecer e não resistir terá sido à vontade do senhor nosso Deus. Mesmo assim não vou me arrepender de nada que fiz e ainda faço, estou estendendo a mão a quem precisa, e acredite, isso é muito gratificante.
A jovem finalizou a conversa e foi ver outro paciente, estava contente por saber que sua dedicação estava salvando vidas.
Tiago a viu sumir na escuridão da noite comovido. Queria ter um mínimo da fé dela, talvez dessa forma Deus teria permitido que terminasse sua peregrinação, ganhado honras e méritos verdadeiramente merecidos. Tocou na cruz vermelha bordada em sua roupa velha, suja e puída, e não pode deixar de pensar: Eis aonde chegastes cavaleiro templário. Eis a tua Honra ao mérito.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Jazigo Perpétuo

                    
 Alye estava deitada na cama em seu quarto escuro fazendo hora até chegar o momento de encontrar com seus amigos no local combinado para tomar um drink, só eles entendiam as coisas que se passava em sua alma, coisas que o mundo fazia questão de ignorar. O mundo era tão cruel, aprendera isso muito cedo, exatamente quando perdera sua irmã tão querida, sentira uma dor imensa, no entanto, as pessoas sequer lembraram que pudesse estar sofrendo, era apenas uma criança, eles tinham mais com que se preocupar como suas próprias dores, por exemplo. Não ficara um só dia em que não lembrasse daquele bebê outrora rosado e risonho e não sofresse como se fosse ontem aquela perda, agora amava a morte como um mistério a ser desvendado, amava a ideia de morrer, mas não se mataria, não era desse tipo de morte que gostava. Amava o sacrifício que ela representava, a beleza que ela trazia consigo, amava velórios e o vermelho renegado pelo luto. Nunca vira a mãe tão bela quanto na época de dor, havia algo de poético em tanto sofrimento, a pele marcada pelas lágrimas, as roupas negras e a melancolia. Mas tudo passara e ela seguira em frente. Não era como Alye, que adotara a dor como projeto de vida, não por exibicionismo, mas por puro bem estar. Amava se olhar no espelho e se ver pálida como o bebê naquele caixão, contrastando com seu batom sangrento, suas vestes e unhas negras, sua maquiagem carregada de sentimentos, seus cabelos vermelhos e lúgubres, sua beleza anormal. Amava o amor em si, amava seus amigos e não tinha vergonha de se expressar diante das pessoas. E apesar de causar tanta estranheza nas pessoas com as quais infelizmente era obrigada a conviver, se considerava completamente normal. Só mais corajosa por não ter vergonha de se revelar para todos que se escondia do mundo por puro comodismo.
Ela levantou impaciente e olhou pro relógio, não via a hora de saltar daquela janela para respirar ar puro, adorar a lua, sentir a frieza das paredes e muros, abraçar os amigos e se divertir. Só tinha uma coisa da qual se arrependia de não ter feito, não ter abraçado sua irmã quando podia. Lembrava-se nitidamente daquele momento quando a vira dormindo roxinha e marmórea no seu berço perpétuo, lembrava da vontade que sentira de sentir a frieza que aquele corpinho emanava, a rigidez de seus músculos e a doçura de sua pele pálida e bela. Mas não o fizera e agora se torturava por ter se privado daquele ultimo prazer. Ela foi levada para sempre de sua companhia. Lembrava das inúmeras vezes que fingira estar morta, só para ouvir os gritos e lágrimas de desespero de sua mãe, mas tudo que queria naquela época era mostrar para os pais que continuavam vivos apesar de seu bebê ter partido. Hoje não havia mais esses caprichos, apenas o compromisso consigo mesma de ser feliz apesar de tudo. Apesar do mundo ser cinza, da felicidade ser negra como a noite e fria como um jazigo perpétuo.